Um começo

tazio zambi
2 min readDec 16, 2020

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O sol desaba sobre o jardim, escorre pelas frestas da janela, amarelo-escândalo. Uma trepadeira se arrepia com o vento que se mete, malicioso, pela ramagem, espantando calangos e borboletas. Espectros que o vidro acanelado revela.

Tateio com os pés descalços o chão empoeirado onde folhas secas intrusas vêm brincar de esconder. Estalam como vidro sob o erro de meus pés. Tento ter os olhos abertos, ainda lesos do sono recente, e espero que o dia, domesticado pelas esquadrias, se sente à mesa. Mas ele se espalha, incendiário. Indiferente aos dorsos dos pássaros em voo, esgarçando as ralas nuvens sem sumo, atravessando as telhas, os tijolos e a massa que os amalgama pra me lamber como a uma cria. A sala encandeia como um holofote.

Agarrado à grade, ouço a cidade ainda embargada. Os risos dos trabalhadores que passam pelas ruas montados em bikes, falando putarias, prometendo saltos, esconjurando otários, tropeços da alegria, do progresso da nação brasileira. O ar pesado da fuligem da primeira lenha dos primeiros galetos, dos esgotos abertos pelas retroescavadeiras, de medo. Planejam festas e acintes. E logo voltam a arrastar os olhos no chão que se espreguiça aumentando distâncias. Roncos graves de motores de caminhão fazem tremer os vidros das cristaleiras e somem como pesadelos de catástrofes. Risonho sob o sol, o cachorro late e mija ao mesmo tempo.

Agora, a mesa onde se trabalha diante da janela aberta sem pânico. A luz já é um bicho familiar que nos ronda, se enrodilha em nossos ombros, nos faz rir. Vejo um cara na tela apagada do computador pensando em como começar e, mais adiante, depois do vão, uma parede. (A dúvida do tamanho da parede, ele anota em algum lugar.) De vez em quando o mamoeiro se agita, manchando de verde o deserto branco-isopor, e o bugari, aqui do lado, no terraço, traz um perfume doce que se mistura ao vapor do café forte. Passam pombas velozes e gordas como projéteis antiaéreos e macambúzias sacolas de compra enquanto o rumor de makitas e betoneiras apalpa meus tímpanos espantados. Eis o manancial das crônicas que virão.

Alguma coisa que me leve pra fora, escreve-se. Vontade de mundo. E penso na pilha de livros de viagens, por gentileza, escanteados no contracampo. Nas verdes grimpas de cartões-postais das cidades distantes onde ainda não me perdi. Nas águas calmas das lagoas que o vento da tarde lentamente arrepia e os remos das jangadas acarinham com dó pra que eu as descreva assim. Etc. As imagens vêm e passam, me driblam, os braços se esticam preguiçosos tentando contê-las e assomam ao campo de visão papéis, canetas, uma xícara vazia, envolvidos pelo bafo benfazejo de um ventilador ligado. Um bocejo engole a paisagem. Beleza, fera.

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