Rolê

tazio zambi
3 min readDec 19, 2020

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A constelação estática dos postes da cidade. Não significa nada, se descobre aos poucos. Cada lâmpada acesa paira sobre a gente como um sonho de anunciação replicado nas poças d’água onde se bolem baratas. Os pés vão cavando caminhos na noite entre latidos de alerta e a latomia dos motores. De repente, um farol de carro queima as retinas e nos lembra do sol que se enterrou bem pra lá dos canaviais. Ninguém mais sabe quando volta.

Anda-se evitando a própria sombra. Evidência de que estamos perigosamente ali. A discrição gingada dos fugitivos, que se misturam às coisas sem forma, e se esgueiram atrás de entulhos, latarias de foodtrucks abandonados, marquises sob as quais laranjas podres proliferam. Numa esquina dois pares de olhos faíscam, e se esbarram, e se espantam como pássaros num tiroteio. Fogem de si.

Enquanto atravesso uma rua, algo me alcança. Um rumor difuso que se instala na cena, me persegue e segue num crescendo. Penso numa onda que se eleva tão lentamente que ninguém repara até que toca o céu e então desaba. O cerco se arma: limita os passos, que se enrolam, as pernas tropicam nas calçadas planas e limpas, azoreta. Nenhuma evasão possível enquanto a pancada final demora. Identifico o espectro do surdo monótono de todos os pagodes, os risos nervosos de pandeiros e cavacos, e estaco numa esquina atrás de um poste cego, incrédulo.

As ouças curiosas vão se abrindo, apalpam minúcias. Vem um vozerio que se passa por marulho, e em pouco tempo se distinguem o tilintar de talheres, copos, gritos de deboche, alguém que escarra com gosto. E os urros e os uivos e os coros diabólicos das canções incompreensíveis. A encenação histriônica das orgias que o excesso de álcool comanda. Os canos de escape das motos financiadas do desastre ladram pelas avenidas. Trombetas do apocalipse guiadas por playboys que se embriagam nos bares boçais e dão tiros pro alto acertando os peitos da madrugada. (Amanhã as notícias devem chegar audiovisuais, fungadas, fedendo a Chanel n. 5, mijo nas calçadas, suor de cachaça.) Os perdigotos da alegria enlameiam o ar.

As ruas se esfumam com o estampido do trinco da porta de casa. E já estou no terraço entre plantas, grilos que as devoram e o calor do cimento sob os pés. Uma paisagem cujos jogos de luz e sombra sei de cor. Vejo meus braços sem nenhum espanto, ágeis e funcionais, e apalpo a nudez de meu rosto sem máscara. Um jasmim-laranja bota suas flores e ilumina a brisa de um cheiro vivo como confetes que vão se estabacar por aí. Meus pulmões se alargam plenos quase a ponto de estourar. Me seguro ao parapeito com a serenidade de quem não está corrido de nada. De um lado, a visão de telhados e gatos, e de outro, um paredão branco como uma folha de papel. Entre os dois, o chiado da noite. Um pavio aceso.

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